Por que, então, há tanta dificuldade de se trazer o mundo para a sala de aula? Uma entrevista com o professor Antoni Zabala.

Esse texto é uma continuação da etapa do projeto de pesquisa de doutorado do professor Mauritz Gregorio de Vries, apoiada pela Escola da Vila, apresentado no texto As tendências educacionais em Ensino de Ciências da Natureza no Brasil e na Espanha.

 

 

Esses dias uma estudante do 3º ano do Ensino Médio me fez uma pergunta que sintetiza muito as nossas discussões sobre o que e como ensinar ciências na escola. Enquanto discutíamos as origens da Química Orgânica e os estudos de Liebig, ela questionou:

“Você quer dizer que esses conceitos se formaram enquanto esses cientistas buscavam resolver um problema prático da agricultura?”

Foi uma pergunta que me chamou muito a atenção. Por que essa relação, entre o conhecimento e resolução de um problema, pareceu estranha? O conhecimento científico é produzido numa relação de grande tensão entre os problemas que trazem a vida e os aparatos conceituais e procedimentais no ramo das ciências e tecnologias desenvolvidos ao longo da história humana. Mas por que, então, os conhecimentos científicos são apresentados como cláusulas pétreas do comportamento da natureza? Por que a ciência assume um lugar diferente da própria história humana? Como fomos consolidando o papel do conhecimento científico na escola a uma função quase exclusivamente para o universo do vestibular? 

Há tanta riqueza na produção do conhecimento científico quando entendemos este como uma síntese histórica da resolução de problemas relacionados à alimentação, combustíveis, fornecimento de água, medicamentos, produtividade industrial, comunicação. Por que, então, há tanta dificuldade de se trazer o mundo para a sala de aula? Por que esse conhecimento não é mais aproveitado na formação crítica dos estudantes? Essas questões, claro, nos fazemos enquanto estudantes, docentes e familiares. Normalmente ela vem na forma “por que precisamos aprender isso?”. É sem dúvida uma questão profundamente trabalhada na área de Ensino e Ensino de Ciências.

Para aprofundar essa questão, apresentarei os principais aspectos que foram conversados com o professor e pesquisador Antoni Zabala no dia 15 de dezembro de 2022, na viagem realizada à Espanha com o apoio da Escola da Vila. Zabala apresenta grande participação na assessoria de produção curricular em diversos países, é autor de diversos livros influentes na pedagogia e  estabelece longa parceria com o Centro de Formação da Vila.

 

Comecei a entrevista com uma questão mais formal sobre a sua percepção sobre as concepções de ensino e aprendizagem dos currículos nacionais atuais e suas capacidades de detalhar com qualidade os conteúdos de ensino e estratégias didáticas coerentes.

 

“(…) Há inconsistências e contradições. E as razões pelas quais os textos [curriculares] que são produzidos estão em situação de crise de mudança, e que ao mesmo tempo convergem pensamentos contraditórios, é que estão relacionados à história do que foi o ensino. (…) O modelo, a mudança profunda, está relacionado com o que é objeto de estudo da escola. E simplesmente, o objeto de estudo da escola, aquela que se propôs, de onde viemos, são os conhecimentos proporcionados pelas diferentes disciplinas. Portanto, o que devo saber é matemática, física, química… O objeto de estudo é a química, é a física. Esta é a nossa história. E nós o articulamos sob este conceito. O que a mudança de paradigma levanta é que o objeto de estudo não é a química, a física ou a matemática. O objeto de estudo são sempre os problemas que a vida levanta. O conhecimento da vida. Intervenção na vida. Portanto, não é para o conhecimento, mas para o sentido que esse conhecimento tem. De alguma forma o objeto de estudo é a realidade, situações da realidade, que devem ser compreendidas. Onde as disciplinas não são o objeto, são os meios, de tal forma que eu quero resolver uma situação da realidade e preciso de conhecimentos de química para poder responder a ela. Isso é uma mudança total porque no paradigma anterior os professores, ou seja, aqueles que devem realizar o ensino, não foram criados a partir de uma visão do que são os problemas da vida. Caso contrário, o que é química, ou física, ou linguagem… e cada um foi treinado para ensinar isso. Ensinar seu objeto de estudo.

(…)

Agora, por exemplo, qualquer animal, um sapo, não pode ser entendido a partir de um modelo que não seja sistêmico. Para entender o sapo, devo colocá-lo no sistema correspondente, no ecossistema correspondente. Anteriormente, em muitos casos, encontramos que o sapo surge de uma classificação taxonômica das ciências. Sapo é tal coisa, tal coisa, tem essas partes, se comporta, etc. Não dentro do sistema. Por quê? E agora eu vou me explicar. O modelo de toda a vida, o modelo anterior, era um modelo descritivo e analítico. Deixe-me explicar: analíticas são as partes. Tenho interesse nas peças. E então a química, a física, a biologia, agora a bioquímica… Por quê? Porque a realidade é um poliedro que tem muitas faces e só pode ser compreendido quando há uma combinação de faces. Eles são multifatoriais. E descritivo é como as coisas são. E nós estudamos assim. A célula é assim, o pássaro assim, uma base é assim. Usamos esse modelo analítico e descritivo: o sapo é. Por outro lado, o modelo de competência implica um modelo que não é analítico, mas sim sistêmico, global e holístico. E por outro lado não é descritivo, mas é interpretativo. Aqui está como as coisas são e aqui está por que as coisas são. (…) Aqui está uma grande mudança disruptiva no pensamento de todos os cientistas e estudiosos ao redor do mundo. O problema que temos, e já dura algumas décadas, é como passar do pensamento analítico e descritivo para um modelo holístico, global, sistêmico.(…) Em outras palavras, devo saber como é uma célula. Mas o importante é: que papel a célula tem em um determinado contexto?”

 

Questiono que, do ponto de vista formal, a maioria dos discursos educacionais convergem para a ideia de uma escola voltada para lidar com a realidade, mas que as práticas ainda avançam lentamente.

 

“Sim, o problema são as contradições. O que estou listando, tentando explicar, são as incoerências que podem existir entre o que se pretende e… Em outras palavras, o problema é como transferir algumas ideias [teóricas] com as quais todos concordamos. Ninguém agora rejeita os modelos sócio-construtivistas. Ninguém.(…)” 

 

Pergunto se a proposta de sempre começar uma sequência didática por um grande tema, um grande problema, é um caminho coerente.

 

“Vejamos, a história do conhecimento nos ajuda muito a falar sobre como resolver alguns desses problemas. Toda a construção do conhecimento existente nas diferentes disciplinas tem sido resultado da resposta a um problema. Alguns químicos não se sentaram e vamos inventar a química. Vamos inventar a tabela periódica. Vamos… Se olharmos para a história, ela explica diferentes problemas que foram levantados historicamente e [acabam resultando em explicações de] como as coisas funcionam. (…)

Encontrar um problema que envolva matemática, física… Esse é o nosso objetivo. O que um aluno precisa? Um cidadão? Ter a capacidade de resolver problemas sabendo que todos os problemas são complexos. De partida. Na vida, o que as pessoas precisam é dar resposta aos problemas que a vida coloca. Em todas as áreas: pessoal, interpessoal, social e também profissional. (…)

Estamos constantemente trabalhando na complexidade. O mundo da ciência é extremamente complexo. O mundo da vida é extremamente complexo. Portanto, temos que ajudá-los a isso. (…) Encontrar uma situação complexa que esteja próxima da realidade e que torne o que eu tenho a aprender significativo e funcional. Em química seria colocar situações reais onde há problemas, onde os problemas são químicos, mas desde a complexidade. Onde é necessário entender qual instrumento químico, qual instrumento conceitual de química, deve ser usado e qual instrumento metodológico de química deve ser usado. Isso me ajuda a produzir pensamentos complexos e também me permite entender que tudo que vou aprender é necessário para alguma coisa. Coloco um problema onde surge a necessidade de entender o que é a base e diferenciá-la de ser um ácido. E por isso te dou um problema, uma situação de realidade em que eles podem… e o que é interessante na escola é que aparece mais de um elemento que não é somente da química. Mas desde logo o problema permite situar a complexidade e depois utilizar um instrumento a partir da sua funcionalidade. ‘Hoje vamos falar sobre bases, ácidos’. Não. A gente tem um problema e o conceito de qualquer caso de ácido-base aparece aqui. Muito bom, já estamos no lugar: complexidade e funcionalidade. Segundo lugar, os problemas da vida não são químicos, mas sim problemas mais complexos. E se vamos entender a vida, então vamos procurar mais coisas que possam ser compreendidas… o que é importante para a linguagem, ou o que é importante para a matemática, ou o que é importante para as ciências sociais. E aqui estaria tentando buscar aspectos de um problema químico. Por exemplo, houve uma contaminação aqui perto em Tarragona, uma empresa petroquímica, houve um certo vazamento de gás e isso fez com que as autoridades dissessem que durante o dia as pessoas não devem sair na rua, enquanto houvesse uma forma gasosa… É motivo para introduzir conceitos de todos os tipos. Linguagem: o que dizem os jornais? Vamos ler como dizem diferentes jornais… Leia um texto científico. Em matemática: qual foi o raio em que ela se moveu, quantas pessoas foram afetadas, qual a porcentagem de pessoas… Que problemas uma petroquímica tem perto de uma cidade? E como isso afeta essas pessoas? Onde os petroquímicos devem se colocar? E tem que colocar o polo petroquímico aí? Vários problemas aparecem em torno de um que era simplesmente um problema de física, de química. Como isso é resolvido?”

 

Pergunto por que nos chega muitas vezes que as orientações competenciais se distanciam do conhecimento e buscam fomentar com muita ênfase habilidades genéricas como trabalhar em grupo, autonomia, etc., sem relacioná-las com os conhecimentos acumulados pela humanidade.

 

“Isso é um erro, ou seja, um erro. Existe um erro e é muito… Acho que esse erro está fazendo muito estrago e é determinado por uma ideia de mudança. Basicamente, por contraste com o modelo anterior. Existe um componente de uma escola que se baseava, para dizer de forma simples, na memorização, no conhecimento, no livro didático e na disciplina. Uma pequena ideia da lei do pêndulo. Onde aqui disciplina, conhecimento: não. O importante são as habilidades. (…) Isto é um erro. Um problema. Quando analisamos a realidade, vemos que para responder a… Todo mundo que quiser responder aos problemas do cotidiano, deve usar conhecimento factual, conhecimento abstrato, habilidades e atitudes. O que acontece é que se faz… num mundo que tem sido basicamente baseado no conhecimento, agora pela lei do pêndulo o que importa são as [habilidades]. Mas não, não tem, claro. Eu também tento diferenciar competência de habilidades, competências de skills. Competência é um construto que compartilha fatos, conceitos, procedimentos e atitudes. E, portanto, sem conhecimento é impossível ser competente. Impossível. Preciso de conhecimento e também de memória. O que acontece é que o conhecimento por si só não traz competências.

(…)

Como agora, é difícil para nós transferirmos algumas ideias de competências para a realidade, porque você aprende a transferir transferindo. Você aprende a fazer fazendo. Então a questão é: por que a competência não é bem compreendida? Porque é simplificado, de modo que a competência está associada à habilidade. Competência é confundida com habilidade.

 

Para finalizar, indago sobre a dificuldade de se realizar trabalhos amplos com problemas reais e organizar quais são os conhecimentos conceituais e procedimentais disciplinares necessários para realizar um trabalho aprofundado. Em outras palavras, que muitas vezes somos capazes de fazer uma boa sequência com um problema real mas sentimos que o ensino e aprendizagem disciplinar pode ficar comprometido, superficial.

 

“Eu procuro transmitir quando trabalho com as escolas e com os colegas… procuro pensar que o professor deve organizar dois momentos de ensino. Quando você está ensinando qualquer coisa. Um momento que seria um horário de trabalho global e outro momento de trabalho específico. No momento de trabalho global, o projeto, ou outra proposta, a gente faz o projeto e para fazer o projeto a gente realiza diferentes atividades. Organizado. Colocamos a situação que representa um problema e fazemos o projeto. Para chegar nesse projeto, tivemos que usar diferentes estratégias e ao mesmo tempo diferentes perguntas foram aparecendo. (…) Eu terei conseguido que todos os alunos tenham conseguido, nesse processo, fazer o projeto, intervir no projeto. Mas eles aprenderam mais, ou menos, dependendo de suas habilidades cognitivas. Porque sobre a fotossíntese alguns já tinham alguma ideia, leram algo, viram algo, outros nada. Portanto o grau de compreensão é variado. Quando nesse projeto, algumas aprendizagens podem ser superioras a outras. Mas todos podem continuar trabalhando ao mesmo tempo, ou seja, toda a turma pode estar construindo um terrário, ou uma horta, todos podem participar. Mas as competências têm regras factuais, conceituais, processuais e componentes atitudinais. Aqui eles têm sido competentes, mais, ou menos, mas vemos que para aprender os conteúdos factuais é necessário o momento de trabalho específico. Porque agora apareceu o termo fotossíntese, a função da clorofila, você quer que eles saibam o nome do gás oxigênio…

(…) Na escola temos mil caminhos de aprendizagem. Um estudante pode estar no quilômetro 37 e outro no quilômetro 42. Se eu fizer uma atividade para chegar ao quilômetro 52, eu vou desafiar ele. Já se eu montar uma atividade para chegar no quilômetro 37, eles não vão aprender nada porque eles resolvem fácil. 

(…) A elaboração, o procedimento, você vai ter que observar, cortar, fazer algum processo de trabalho em equipe, como você aprende isso? As atitudes são contextuais e por isso aparecem aqui atitudes de ajuda, correspondência, etc. Mas isso implica que não é possível aprender tudo aqui, pois existe um momento de trabalho global e outro momento de trabalho específico. Aqui o que faço é dar um desafio a cada um, baseado em onde está o caminho que o desafiará, aqui é um tempo de trabalho personalizado. E é componente por componente, ou seja, profundo. Aqui, vou me aprofundar no conceito. Vou me aprofundar no domínio de um método correspondente.

(…) Este é o grande drama que temos no momento. A intenção do projeto, em que vamos fazer situações de aprendizagem, devemos lembrar corresponde a algumas funções, mas não todas. Complexidade, muitas atitudes, muitas habilidades. Mas em relaçãos ao que você está propondo, o conhecimento, o aprofundamento de conhecimentos físicos, químicos, matemáticos. Isso requer estudo, tempo de trabalho específico.”

 

A conversa com o professor Antoni Zabala nos indica que diversos atores da educação têm trabalhado por uma mudança de paradigma na educação. Esse novo caminho tem como objetivo interpretar, lidar com o mundo a partir das ferramentas de conhecimento desenvolvidas pelo conhecimento humano.

Um dos principais esforços é tentarmos desconstruir a compartimentação do conhecimento, uma vez que a realidade é multifacetada. As competências, entendidas como a articulação entre os conceitos, os procedimentos e as atitudes, são o que deveriam ser desenvolvidas no trabalho com as situações reais no espaço da sala de aula. É um caminho capaz de trazer bastante sentido e significado para a escolarização básica.

A escola é um lugar seguro onde podemos aprofundar os conhecimentos espontâneos que trazemos do nosso cotidiano e, então, elaborarmos conhecimentos mais sistemáticos, científicos. Explicitar a defesa dessa concepção de educação é importante no contexto delicado que vivemos. A tentativa de trazer o mundo, a realidade, para a escola, pode esvaziá-la de significado na medida que os objetivos sejam a resolução de problemas visando somente o desenvolvimento de habilidades genéricas e formação de cidadãos funcionais. Queremos formar cidadãos capazes de lidar com os problemas pragmáticos que a vida nos coloca, mas de modo complexificado, em que os diferentes conceitos, procedimentos e atitudes sejam mobilizados para uma análise crítica e complexa sobre as situações e problemas colocados.

Para Zabala, as estratégias didáticas coerentes com esses objetivos passam pela organização de espaços de ensino e aprendizagem mais complexos e multimodais. Os projetos, os experimentos investigativos, os estudos de meio são caminhos para mobilizarmos diferentes competências dos estudantes. Um caminho muito interessante foi apresentado na entrevista quando eram abordados alguns problemas enfrentados nesses caminhos. Pode ser que tais estratégias didáticas muito abertas, que ele chamou de “momentos de trabalho global”, podem não contemplar determinados objetivos pedagógicos, como o ensino de termos e conceitos mais organizados. Isso poderá ser solucionado se houver a organização de “momentos de trabalho específico”, em que os estudantes são convidados a estudar de maneira mais específica aspectos que foram presentes nos “momentos de trabalho global”, mas não houve a sistematização necessária. Nesses momentos, o professor terá a riqueza do sentido e significado que os “momentos de trabalho global” trazem para apresentar leituras, exercícios, avaliações ou outras modalidades necessárias para a exercitação e prática.

Por último, outra questão apresentada foi a personalização de aprendizagem. A relação de trabalho do professor com os estudantes nessas modalidades permite aos professores o levantamento de dados que indicam as dificuldades e as facilidades encontradas pelos estudantes, que são sempre heterogêneas. Torna-se, assim, importante apresentar ajudas aos estudantes com defasagem e desafios àqueles que apresentam facilidades.

A escola precisa se aprimorar para trazer o mundo para a sala de aula, e isso deve ocorrer de modo organizado, sistematizado, para que a abordagem dos problemas reais sejam aprofundadas e críticas. Tais caminhos são heterogêneos, demandando mais apoio a alguns estudantes e mais desafios a outros.

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