por Helena Andrade Mendonça e João Pires
No texto a seguir, não pretendemos trazer respostas fáceis ou soluções mirabolantes a respeito da chegada de recursos de inteligência artificial na escola, mas, sim, compartilhar algumas referências e perguntas sobre esse tema que nos tem inquietado.
Em novembro de 2023, fomos convidados a participar de uma palestra sobre Inteligência Artificial. Um dos convidados, o advogado, professor e pesquisador de tecnologia Ronaldo Lemos nos fez uma provocação: diante da difusão e ampliação do acesso aos recursos de IA generativa na escola, que tal seria se nós usássemos não somente referências teóricas para pensarmos sobre esse fenômeno, mas, sim, uma narrativa literária como referência, considerando para isso o que ocorre com as tecnologias nas histórias de ficção científica.
Para isso, Ronaldo nos sugeriu evitar filmes como Eu, Robô, ou Matrix, que são histórias em que as máquinas lutam violentamente ou travam guerra contra a humanidade. Uma história em que outro tipo de contato ocorre, como é o caso do emblemático filme A chegada, dirigido por Denis Villeneuve, e que é a adaptação do conto História da sua vida, escrito pelo autor norte-americano Ted Chiang em 2000, e que o fez receber o Prêmio Nebula de Melhor Novela no mesmo ano.
Nesse filme – e também no conto -, a humanidade se desorganiza radicalmente quando 12 objetos alienígenas pousam sobre 12 pontos da Terra divididos em diferentes regiões do planeta, sem seguir um padrão comum. Equipes militares são convocadas a cercar esses objetos e analisá-los até descobrirem se eles representam ou não uma ameaça para a vida humana.
De modo semelhante, nos últimos dois ou três anos, também nós vivemos intensamente, lidamos (e, como na história, nos desorganizamos) com esses recursos que foram meio que pousando sobre nossa escola e nossas salas de aula. Esse movimento nos levou a observar por aqui uma primeira ação de cercá-lo, de interditá-lo e restringi-lo (“é possível bloquear o ChatGPT para sempre?”, alguns professores diziam), mas também nos levou a fazer uma série de leituras, escutar podcasts e participar de eventos – como aquele em que Ronaldo trouxe essa provocação – que nos ajudassem a compreender como esses diferentes, porém não tão novos, recursos de IA generativa poderiam impactar as aulas depois de pousar sobre elas e os dispositivos de nossos estudantes.
Em uma dessas ocasiões, participamos de três encontros organizados pelo IBMec, com professores do Ensino Médio de escolas privadas de São Paulo, para discutirmos sobre os avanços da IA na educação. O primeiro encontro, ministrado pelo Prof. Ronaldo Barbosa, teve início com uma segunda provocação. Neil Postman, no livro Tecnopólio1 propõe uma reflexão a partir de seis perguntas, antes da adoção de uma tecnologia digital:
(1) Quais problemas serão resolvidos com a adoção dessa tecnologia?
(2) A quem pertence este problema atualmente?
(3) Que pessoas e instituições serão prejudicadas com esta adoção e a solução deste problema?
(4) Quais são os novos problemas criados com esta adoção da tecnologia?
(5) Quais as pessoas ou instituições que ganham poder político e econômico com essa adoção tecnológica?
(6) Quais serão as mudanças na linguagem a partir dessa adoção tecnológica?
Vamos, então, pensar em um caso de interação com um recurso da IA Generativa, como, por exemplo, o ChatGPT, o Gemini ou outro similar, com uma pergunta sobre a elaboração de um plano de aula a partir de um tema e de competências que serão mobilizadas junto aos estudantes por um professor. Para escrever um bom prompt, vamos considerar as seguintes informações: Persona, Objetivo, Destinatários, Tema e Estrutura.
Persona: definir quem é o “narrador” ou a “voz” do prompt.
Objetivo: especificar o que você quer alcançar com o prompt.
Destinatários: identificar quem é o público-alvo do prompt.
Tema: determinar sobre o que o prompt será.
Estrutura: organizar o prompt de forma lógica e clara. Começar com uma introdução breve, apresentar o contexto ou a situação, detalhar a tarefa ou pergunta principal, e finalizar com orientações específicas ou expectativas.
Exemplo de um prompt para esta interação: ‘Sou um professor de programação e gostaria que meus alunos de 7º ano aprendessem a usar condicionais para programar. Eles já conhecem o básico do programa que está sendo usado, o Scratch. Tenho três aulas de 100 minutos para abordar este tema com meus alunos e eles têm acesso a um computador por dupla para o trabalho.’ Sugestão: experimente colocar esse prompt em um dos recursos de IA mencionados.
A princípio, (1) a vantagem no uso desse recurso seria uma ‘resposta rápida’ para a necessidade em questão, que é planejar uma ou mais aulas. Este problema é do professor (2) que, a partir da resposta proposta pela IA, com sua experiência e conhecimento, irá adequar o planejamento para a sua Instituição, para a sua turma, para o seu contexto. O professor poderá fazer novas perguntas para refinar a resposta. Isso acontecerá até que ele chegue em um resultado que ele julgue bom. Para que a qualidade do planejamento seja garantida, é fundamental que o professor possa fazer os devidos ajustes a partir da primeira pergunta, se não, a Instituição e principalmente os estudantes serão prejudicados com um planejamento e uma aula que não esteja adequada aos objetivos e ao público (3).
De modo semelhante ao que ocorre no filme, para que o professor saiba como usar o recurso da IA Generativa de forma adequada, para que possa fazer boas perguntas, para que conheça o modo de funcionamento da IA, suas potencialidades e limitações, ele precisa explorar os recursos disponíveis, dialogar com seus colegas, estudar e refletir sobre o uso de tais tecnologias na prática pedagógica (4). Nesse sentido, a escola oferece formação para o professor? Ele tem a possibilidade de participar de espaços de reflexão para este fim?
Na história que usamos como metáfora aqui, a personagem principal é uma linguista, a pesquisadora Louise, que escolhe deixar seus equipamentos de segurança para ter um contato mais direto e humano com esses personagens estrangeiros que se apresentam para ela, contrariando um pouco a estrutura que a levou a ter aquele contato. A reação geral dos personagens que representam a humanidade quando as naves chegam é ficar com pânico, medo.
De modo geral, nós também ficamos assustados e amedrontados com os avanços da IA generativa. Se pensarmos nesses elementos como uma metáfora, podemos dizer que os equipamentos que Louise usa (que se parecem com um escafandro, um equipamento antigo de mergulho) podem representar, ao mesmo tempo, os recursos necessários para tomarmos contato com um fenômeno desconhecido e também a nossa resistência em relação a um objeto novo. À medida que a heroína se apropria do falar alienígena, ela vai gradualmente abrindo mão desses elementos, despindo-se deles até chegar ao ponto em que imerge totalmente no contato com os alienígenas.
De modo semelhante, quando sentamos diante de um recurso de conversação como o ChatGPT, Gemini ou o Copilot, dependendo do repertório que temos em relação às potencialidades do digital e de como ele pode impactar nossas vidas, nós também nos inquietamos e ficamos com receio e medo de saber onde ele irá nos levar. Será que a IA poderia nos destruir? Será que já está nos destruindo do modo como está usando nossos dados?
Voltando às questões propostas por Neil Postman, sobre a interação com o digital, (5) o professor deve pagar para o uso desse recurso? Se ele não pagou com dinheiro, então pagou com seus dados e sua inteligência ao fazer novas perguntas. Quem se beneficia com o valor financeiro ou a inteligência do professor é a empresa que desenvolve o recurso, no caso a OpenAI, a Google ou a Microsoft. Essa troca é clara para o professor e para a Instituição?
No enredo cinematográfico, a história se modifica quando a protagonista é capaz de se apropriar do contato com os outros seres, que se expressam de uma maneira diferente do que ela está habituada, mesmo sendo uma grande estudiosa de línguas e idiomas do mundo todo.
No nosso contexto, é difícil antecipar o que vai ocorrer com a sala de aula com a ampliação do contato com a IA mesmo para quem tem formação mais especializada no tema. Se usarmos, então, essa narrativa como referência, podemos considerar a dialética do filme no auge da trama: à medida que a personagem vai se apropriando da linguagem alienígena, sua percepção sobre si mesma e o mundo como conhece vai sendo modificada.
Embora, como dito anteriormente, não seja possível fazer previsões nesse cenário de mudanças rápidas e exponenciais, muito possivelmente o contato com IA, assim como ocorre na narrativa, irá impactar o modo como representamos a realidade, a maneira como lidamos com as múltiplas linguagens nos computadores (6) e afetará ainda mais intensamente nossa percepção de consumo, tempo e espaço. Isso poderá acontecer de modo semelhante ao que já temos vivido com os algoritmos com os quais lidamos diariamente nas plataformas, que já podem pautar o que desejamos (algoríntimo2) e que vão desenhando esses caminhos personalizados, a partir de nossas próprias identidades digitais. Essas representações de nós mesmos são alimentadas pelos dados que cedemos e também pelas informações que as empresas tomam de nós sem que tenhamos consciência.
Contatos com novas tecnologias e linguagens não conhecidas trazem potenciais e riscos latentes. No conto e no filme, o contato com uma nova linguagem permite à personagem uma ampliação profunda de sua percepção da realidade, uma abertura do olhar. Na contemporaneidade, o modo como temos vivido o contato com uma IA sem regulação, por um outro lado, pode reforçar um efeito contrário ao que ocorre com Louise e trazer e reforçar uma experiência de subordinação, limitação e achatamento de quem somos e do modo como compreendemos a realidade fora dos recursos digitais.
Como então podemos circular por esses meios, conscientes dessa complexidade? Acreditamos que um dos caminhos é fazer esse exercício de aproximação e distanciamento, reflexão e uso, ação e pausa.
Referências:
A CHEGADA (ARRIVAL). Direção: Denis Villeneuve. Ano de lançamento: 2016. Produção: Shawn Levy, Dan Levine, Aaron Ryder e David Linde. Roteiro: Eric Heisserer, adaptado de Story of Your Life, de Ted Chiang.
CHIANG, Ted. História da sua vida e outros contos. Editora Intrínseca, 2016.
PATZDORF, Danilo. Pequeno manual para corpos esgotados. Disponível em: <https://paisagenscolaborativas.wordpress.com/wp-content/uploads/2021/11/pequeno-manual-de-autocuidado-para-corpos-esgotados-danilo-patzdorf-final-e-revisado-danilo-patzdorf-casari-de-oliveira.pdf> Acesso em 20 jun. 2024
PATZDORF, Danilo; DI FELICE, Massimo. Sobre aquilo que um dia chamaram corpo: Corporalidade nas ambiências digitais. 2017.
POSTMAN, Neil. Tecnopólio: A Rendição da Cultura à Tecnologia. Tradução de M. S. Barros. São Paulo: Nobel, 1994.
Notas:
1 POSTMAN, Neil. Tecnopólio: A Rendição da Cultura à Tecnologia. Tradução de M. S. Barros. São Paulo: Nobel, 1994.
2 Algoríntimo é um neologismo criado pelo artista, educador e pesquisador do corpo Danilo Patzdorf para questionar o modo como os algoritmos das redes sociais podem levar seus usuários a desejar algo que não desejariam sem sua intervenção para que consumam mais.
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