Por Aline Evangelista Martins
“O Estranho Caso do Cachorro Morto”, de Mark Haddon, é um romance narrado em primeira pessoa por Christopher, um garoto de 15 anos, que vive com o pai em uma pequena cidade no interior da Inglaterra, e decide investigar a morte do cachorro do vizinho. À medida que avança na busca de pistas sobre o mistério, o jovem se deixa conhecer e cativa os leitores com sua paixão por listas, obsessão pela verdade, habilidades na física e na matemática e impressionante capacidade de memorização.
“Meu nome é Christopher John Francis Boone. Sei todos os países do mundo e suas capitais, e todos os números primos até 7.507.”
Haddon, Mark. O estranho caso do cachorro morto. Rio de Janeiro: Record: 2006, p. 10
Empenhado na investigação sobre o misterioso assassinato, o protagonista descobre não apenas caminhos que o levam à solução do caso, mas também informações surpreendentes a respeito de sua vida familiar – descobertas que o abalam profundamente, por ferirem um dos princípios que lhe são mais caros: sempre ter acesso à verdade. A consciência de que o pai havia construído uma intrincada rede de mentiras para justificar a ausência da mãe o motiva a afastar-se dos espaços de proteção, enfrentar dificuldades, fazer o que nunca havia feito, e, neste processo, descobrir-se capaz de grandes conquistas.
Há, no livro, elementos de romance de formação, mistério e aventura, em meio a intensos dilemas morais. As muitas camadas de significado vão se revelando à medida que os conflitos vividos pela família se desdobram e se aprofundam. O leitor se vê, então, diante de temas complexos, como costuma acontecer nos bons livros.
E em meio a todas essas situações difíceis, para onde a atenção dos alunos do 8º ano se volta? Supor que, ao ler sobre pessoas que mentem, os leitores passarão a faltar com a verdade, ou que, ao acompanhar o ímpeto de um garoto que sai de casa, os jovens serão estimulados a abandonar seus lares, seria desconsiderar o enorme potencial dos leitores para ir muito mais fundo na reflexão e na percepção da própria humanidade.
“A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade”.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1997.
Semana passada, diante dos acontecimentos recentes envolvendo censura e recolhimento de livros, professores, coordenadores e diretores das escolas do grupo Bahema nos reunimos para pensar sobre o tema . Provocados pelos professores Antonio Candido e Perry Nodelman, refletimos sobre a importância de encorajar a curiosidade pela leitura e o desejo de conhecer mundos possíveis, que podem fazer viver experiências diversas e complexas, ora suaves e divertidas, ora intensas e complexas.
“Permitam-lhes o acesso ao conhecimento do mundo do jeito que ele é, tanto quanto elas próprias desejam saber, e incentivem-nas a desejar saber de tudo da forma mais completa, profunda e sutil possível. E se acharmos que não vão entender algo, então vamos ajudá-las a aprender como entender: ensinar-lhes os hábitos da mente e as estratégias que lhes fornecerão experiências de leitura ricas, cheias de sentido e produtivas”.
NODELMAN, Perry. Somos mesmo todos censores?. São Paulo: Instituto Emília; Solisluna Editora, 2020.
Discutimos a importância de abrir espaços de interlocução, em que os leitores possam compartilhar suas ideias sobre o lido e valorizar a interação com as ideias dos demais, ainda que sejam divergentes.
“(…) trabalhamos pesado para ensinar a eles que seu prazer em determinadas experiências acontecia em meio a outras opiniões possíveis”
NODELMAN, Perry. Somos mesmo todos censores?. São Paulo: Instituto Emília; Solisluna Editora, 2020.
Refletimos, também, sobre a intensidade das experiências éticas e estéticas que a leitura produz, tendo sempre presente que, quando se trata de literatura, o prazer pode ser fruto da fruição fácil, divertida e descomplicada. Mas pode também advir, entre outros fatores, da ampliação das referências e experiências e da possibilidade de entender a si e ao outro.
No nosso breve encontro, retomamos nossos referenciais teóricos e reafirmamos a importância de cultivar o olhar atento para o que dizem nossos alunos. A seleção, a indicação de livros e a mediação da leitura são grandes responsabilidades, que requerem formação contínua dos professores, muito estudo e desejo de ampliar referências, não apenas sobre livros, mas também sobre os leitores, as respostas leitoras e os caminhos para a construção de sentido para o que se lê.
Formar o leitor literário envolve escuta atenta e sensível, capacidade de diálogo e construção de ambientes de aprendizagem estimulantes, em que todos se sintam seguros e confiantes para falar e calar, ouvir e refletir, sentir e pensar, concordar e discordar, argumentar e interessar-se pela argumentação do outro. É com este olhar construtivista, democrático e conceitualmente rigoroso que tomamos decisões curriculares.
E foi com um olhar entusiasmado para as ideias do leitor que lemos e nos emocionamos com o depoimento de uma leitora de 13 anos, quando lhe perguntamos se, ao longo da leitura do romance O estranho caso do cachorro morto, ela havia mudado de ideia sobre algum personagem.
A mãe, especialmente, me deixou confusa. Logo no início, ela fica em segundo plano, morta. Mas Christopher fala dela, de como os pais brigavam e também do modo como ela reagia a seu problema. Parece uma mãe boa, mas cansada. Depois, descobre que ela e o Mr. Shears tinham um caso. Cansada não só do filho, mas do marido. E depois, as cartas. Apesar de ter partido, ama o filho e se corresponde com ele. Uma boa mãe, uma má mãe. Ficamos, ao longo da narrativa, indo e vindo desses extremos. No final, eu concluí que ela era ambos. Mas que estava cansada daquela vida, afinal, o Christopher não é fácil, o que gerou conflitos com o marido, e então o caso com o vizinho na “mesma” situação. Uma mãe boa e má”.
Trecho da reflexão individual sobre a leitura de uma aluna de 8º ano.
Contra simplificações e julgamentos apressados, a profundidade da reflexão adolescente nos aponta caminhos éticos, estéticos e até mesmo curriculares, e nos inspira a seguir confiantes na sensibilidade dos leitores e no papel humanizador da literatura.