Por Aleksandra Franco e Inês De Biase
Mas existe algo com a história, com a narrativa, que sempre estará presente. Não creio que um dia os homens se cansarão de contar ou ouvir histórias.
Jorge Luis Borges
In: Esse ofício do verso1
Nós, adultos, lemos por muitos motivos: para viajar, para nos divertir, nos encantar, lemos para fantasiar e criar, lemos para nos formar, transformar, para sermos críticos, lemos para saber, aprender, compreender, lemos porque há falta, para buscar transcendência, beleza, para nos reconhecermos como humanos e para aprendermos a sermos humanos… Lendo e refletindo sobre o que lemos, nos tornamos melhores leitores e podemos escrever a nossa história.
As crianças também leem por todos estes motivos. Lendo, experimentam o mundo, experimentam a empatia e se tornam leitores mais críticos, compreensivos, menos preconceituosos. Leitores de livros e de mundo.
A leitura literária, diferente de outras leituras que fazemos cotidianamente, permite um mergulho, um aprofundamento em questões que nos encantam e, também, que nos assombram. As crianças, com toda sua potência e curiosidade, produzem cultura ao refletirem sobre o mundo que as cerca e agirem sobre ele, podendo trazer rupturas e transformações quando damos espaço para elas.
A formação de nossas crianças como participantes das práticas de linguagem ocorre ao longo de toda a escolaridade, todos os dias. A narrativa escrita se estrutura ao longo da Educação Infantil e acontece em diferentes situações comunicativas. A partir do uso da linguagem que se escreve, a criança percebe que o texto escrito tem características particulares, que o diferenciam do texto oral.
A leitura tem um papel fundamental no desenvolvimento da capacidade de produzir textos, pois, por meio dela, as crianças entram em contato com toda a riqueza e a complexidade da linguagem escrita. Ouvindo contos, lendo e executando receitas, se apropriando de jogos com regras, por exemplo, é que os alunos, desde muito cedo, conhecem a estrutura da narrativa escrita e as regras desse discurso. Esse conhecimento lhes possibilita compreender outras narrativas, recontá-las e reescrevê-las.
Consideramos fundamental o trabalho com diferentes textos: histórias que se relacionam à uma prática antirracista, aos povos originários, à cultura popular, à cultura oriental, aos chamados clássicos ocidentais etc. Autores e autoras, ilustradores e ilustradoras variados compõem nossos acervos. Assim como livros ilustrados de diferentes editoras, formatos e gêneros.
Dentro desse universo tão amplo e rico, há o trabalho com contos de fadas, que também podemos chamar de contos de encantamento, trazendo para as rodas de leitura contos do mundo todo. Contos que nos trazem, com alegria, lembranças de nossas infâncias e de um outro tempo, tempo onírico do “Era uma vez”, recheado de vozes queridas que nos contavam histórias das quais não esquecemos. Contos que fazem parte de um patrimônio cultural da humanidade, histórias de tradição oral que nos precedem há muitos e muitos anos.
Ainda nesse contexto, Gandhy Piorski (2021) nos fala sobre a importância de nutrir as crianças em suas forças imaginárias para que elas possam se conectar com diversos saberes e questionar realidades impostas, prontas, abrindo novas possibilidades para a realidade do conhecimento apenas racional tão valorizado em nossa cultura ocidental. E que através da imaginação, podemos reconstituir esse mundo fragmentário que habitamos.
Dessa forma, é possível oferecer a leitura de diversas versões do mesmo conto para que possam apropriar-se dos diferentes elementos da história: enredo, sequência dos fatos, conflitos etc. Nessa análise, as crianças percebem que a estrutura do conto não se modifica. O estudo da narrativa ajuda na construção da reescrita, pois já sabem o conteúdo e a sequência dos fatos, podendo, assim, preocupar-se com o que vão escrever, elaborando melhor o seu texto.
Na Educação Infantil, com textos mais ricos e densos a partir dos 4 anos, as crianças são convidadas a adentrar o universo dos contos e vivenciar inúmeras possibilidades de expressão. Ouvir contos de encantamento “contados de boca” ou lidos, amplia o repertório e o universo lúdico e criativo das crianças. Rodas de conversa sobre o que foi ouvido e lido permitem que ricas trocas aconteçam e que haja reflexão sobre as leituras de forma mais ampla: o que emociona, encanta, espanta…, e também conversas sobre a estrutura destes contos e personagens, situações e palavras que enriquecem este mundo imaginário.
Aos 5 anos, as crianças começam a ampliar suas possibilidades como leitoras e escritoras, fazendo uso de diferentes textos e seus propósitos comunicativos, coletiva e individualmente. Ao serem colocadas diante do desafio cotidiano de ler e escrever, mesmo sem fazê-lo convencionalmente, as crianças passam a compreender que a escrita representa a fala e passam a pensar sobre como isso se dá na forma escrita, utilizando cada vez mais pedaços de palavras conhecidas. Fazem parte das etapas desse projeto as situações em que ouvem atentamente diferentes contos e os recontam, reconhecendo semelhanças e diferenças em suas versões, apropriando-se de expressões marcantes da linguagem escrita.
Assim, nos anos finais da Educação Infantil e ao longo das séries iniciais do Ensino Fundamental I, é possível oferecer um trabalho que envolva leitura, apreciação, produção escrita, revisão de aspectos referentes à organização do discurso e à forma convencional de se grafar algumas palavras. Escolhas nada simples, mas totalmente possíveis a crianças mergulhadas no universo imaginário da literatura, tocadas pela concretude das palavras e contagiadas pela aventura das tramas.
Dessa forma, inspiradas em contos conhecidos, as crianças se “aventuram” a reescrevê-los. O trabalho com a revisão textual acontece de forma gradativa, revelando a riqueza do processo de aprendizagem que puderam viver.
O encontro entre a imagem e a palavra nos livros ilustrados apresentados às crianças durante todo o projeto abre a possibilidade para a construção de narrativas e a compreensão da importância da literatura na infância. Ao observar e analisar as características de um livro ilustrado, o olhar para o conceito de leitura é ampliado. As crianças são instigadas a buscarem todos os elementos do livro que remetem à narrativa, como formato, tipos de ilustração, fontes, folha de guarda etc. Neste trabalho, as crianças levantam hipóteses sobre as técnicas usadas pelos diferentes autores/ilustradores, suas interpretações do texto escrito e suas escolhas para a leitura imagética.
Assim, segundo Sophie Van Der Linden (2011),
ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso, e muito mais. Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de enquadramentos, da relação entre capa e guardas com o seu conteúdo; é também associar representações, optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar a poesia do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação a outra … ler um livro ilustrado depende certamente da formação do leitor.
Portanto, muitas intenções cabem nesse projeto: trazer diferentes versões de livros ilustrados contemporâneos, ampliar o estudo dos diversos aspectos destes livros, ler contos em suas variadas versões, conversar com as crianças sobre o que observam e percebem em suas semelhanças e diferenças; buscar boas versões de contos e histórias de diferentes culturas para ampliar o universo majoritariamente europeu destes contos; ler e contar histórias que trazem personagens de diferentes culturas, criando possibilidade de representatividade e identificação; estudar personagens, cenários, vocabulário, estrutura dos contos; criar almanaques com contos e personagens; produzir fotonovelas e recontos; criar jogos relacionados aos contos, entre outros.
Como o adentrar nas florestas dos contos, o percurso do estudo ao livro nos leva por caminhos ricos, repletos de desafios, descobertas e crescimento.
Aleksandra Franco é orientadora da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I – 1º ano da Escola Parque.
Inês De Biase é Pedagoga Especialista em Leitura, Professora do Ensino Fundamental I e Coordenadora dos Projetos de Leitura da Escola Parque.
Os textos aqui publicados não refletem, necessariamente, a opinião do Centro de Formação.
[1] Esse ofício do verso é a transcrição de seis palestras proferidas por Jorge Luis Borges na Universidade de Harvard, entre 1967 e 1968.
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