por Aleksandra Franco Fernandes Silva
“O capinar é sozinho, colher é coletivo”. Guimarães Rosa
A alfabetização tem sido vista historicamente como uma questão de métodos, uma busca pelo melhor e mais eficaz. Até a década de 1970, a maioria das escolas brasileiras era agrupada a partir da metodologia utilizada na alfabetização de seus alunos, sendo que as principais propostas pedagógicas se dividiam em duas formas de ensino: o método sintético e o método analítico.
A partir do método sintético, partia-se da menor unidade da palavra, a letra ou seu som, procurando alfabetizar através de correspondências entre o oral e o escrito, o som e a grafia. Dentro deste, há os métodos alfabético, silábico e fônico.
O método alfabético procurava ensinar as letras e seus respectivos sons isoladamente. “Durante muito tempo se ensinou a pronunciar as letras, estabelecendo-se as regras de sonorização da escrita no seu idioma correspondente.” Porém, este foi superado pelo surgimento de novas teorias, baseadas na lingüística, que entendiam as sílabas ou os fonemas como as unidades ideais para a alfabetização. As psicolinguistas argentinas Emilia Ferreiro e Ana Teberosky analisam os pressupostos deste método: “o processo, então, consiste em iniciar pelo fonema, os associando à sua representação gráfica. É preciso que o sujeito seja capaz de isolar e de reconhecer os diferentes fonemas de seu idioma para poder, a seguir, relacioná-los aos sinais gráficos”.
O método silábico passou a ser mais utilizado do que o alfabético e foi imortalizado pelas “Cartilhas”, que pretendiam alfabetizar por um “caminho suave” – termo imortalizado pela mais famosa delas -, considerando a existência de passos pré-estabelecidos para a aprendizagem do mais simples para o mais complexo. Nestas cartilhas, criava-se, a partir de junções de sílabas, palavras existentes e pseudo-palavras, sendo estas utilizadas somente como instrumento de memorização.
No método fônico, entretanto, ao invés de se partir das letras ou das palavras, partia-se de seus sons, relação fonema/grafema. Ao analisar este método, Emilia Ferreiro afirmou que “estes princípios não são expostos somente como posturas metodológicas, mas correspondem também a concepções psicológicas precisas. Com efeito, ao enfatizar as discriminações auditivas e visuais e a correspondência fonema-grafema, o processo de aprendizagem da leitura é visto, simplesmente, como uma associação entre respostas sonoras a estímulos gráficos.”
O método analítico, por outro lado, partia de unidades maiores, como as palavras ou as frases. Nele, a alfabetização iniciava-se com o reconhecimento global das palavras ou das orações, e depois, se analisavam seus componentes, partindo-se de frases para palavras, destas para sílabas, para letras e, finalmente, para sons, sendo a leitura um ato ideovisual e global.
Ambos os métodos, apesar de suas particularidades, desconsideravam a competência linguística da criança, os propósitos sociais e comunicativos, e eram pensados a partir de habilidades perceptivas.
As pesquisas realizadas por Emília Ferreiro e Ana Teberosky no final da década de 70 e início da década de 80, compiladas no livro Psicogênese da Língua Escrita, em muito contribuíram para a reflexão mais aprofundada sobre como as crianças aprendem a ler e a escrever e, também, sobre quais são os conhecimentos envolvidos nessa aprendizagem, introduzindo no meio educacional um novo olhar sobre o sujeito em processo de alfabetização. Para elas: “a base conceitual consiste em ter uma concepção adequada da escrita como uma representação da fala e vai, portanto, depender do nível de desenvolvimento cognitivo da criança.” Segundo as autoras, o ensino da língua não pode restringir-se a meros exercícios repetitivos, nos quais predomina a memorização dos fonemas que compõem o sistema alfabético, desvinculados do contexto linguístico em que estão inseridos.
Nas décadas que se seguiram, muitos teóricos da educação deram continuidade às pesquisas psicogenéticas, procurando compreendê-la no dia-a-dia da sala de aula. Assim, um primeiro passo importante na aprendizagem escrita é perceber que as letras representam os sons da fala. Apesar de “ainda não terem descoberto que a escrita representa a fala”, as crianças pré-silábicas já têm muitas informações sobre o sistema de escrita. Passam a diferenciar, por exemplo, o icônico (imagens) do não icônico (letras e números – que para elas, inicialmente, fazem parte de um mesmo conjunto), observam e representam diferenças na representação de objetos, tais como quantidade e variedade de caracteres.
Muitas famílias procuram a escola preocupadas por seus filhos não saberem o nome das letras ou questionando por que não ensinamos logo que B + A é BA. Nas escolas construtivistas, partimos do pressuposto de que as crianças que ainda não leem convencionalmente (ou seja, não estão alfabetizadas) buscam indícios conhecidos que os apoiam a ler o todo e ajudam a atribuir sentido às partes (o que chamamos de índices de leitura).
O que isso significa? Nós, adultos, por exemplo, ao aprendermos uma língua estrangeira, muitas vezes não compreendemos todas as palavras escritas num texto que estamos lendo ou todas as palavras que ouvimos quando conversamos com outro falante dessa língua, mas podemos inferir sobre o sentido do que lemos/ouvimos pela interpretação do contexto como um todo. Ou, ainda, quando viajamos para um local cuja língua desconhecemos, somos capazes de levantar hipóteses sobre o que vemos escrito em placas, cardápios etc., lançando mão de conhecimentos prévios, que nos auxiliam como índices na leitura desse texto desconhecido. Assim, o fato de a criança ainda não compreender o sistema alfabético de escrita, nem ser leitor convencional, não os impossibilita de pensar e refletir sobre ele.
Com exceção das vogais, o nome das letras não corresponde ao seu som. Mesmo as vogais trazem suas diferentes pronúncias para uma mesma grafia, como na palavra BANANA, por exemplo, na qual a letra A possui o som de /Á/ e /Ã/. Ou, então, o som da letra E em PREGUIÇA e PREGO, por exemplo.
É claro que saber nomear as letras é uma importante aprendizagem social. Até para que possam referir-se a elas em diferentes situações. Nesse sentido, saber o nome da letra não ajuda a ler, nem a escrever nenhuma palavra. Desde muito cedo, as crianças estabelecem regras próprias para suas escritas, como a quantidade e variedade de letras em uma palavra, estabelecendo critérios para escrever sempre usando mais de 3 letras, utilizando pelo menos duas ou mais letras dentro da palavra, sem que se repitam…
É preciso considerar, também, que um sujeito pode interagir com a leitura e a escrita de textos, compreendendo sua funcionalidade social antes de ser capaz de lê-los e escrevê-los convencionalmente. Os mais variados gêneros escritos fazem parte do mundo que os cerca: cartazes publicitários, placas de trânsito, letreiros luminosos, documentos pessoais etc. Mesmo sem conseguir ler “literalmente” a mensagem transmitida em cada um desses textos, o sujeito inserido no mundo letrado já possui conhecimentos sobre o modo como se organiza o discurso e a maneira como aparece disposto graficamente.
Sabe-se, no entanto, que o simples contato com a diversidade textual que circula socialmente não é suficiente para garantir a construção da base alfabética. É preciso interagir com a linguagem de modo reflexivo, ou, como afirma Isabel Solé, de modo metalingüístico.
Quando percebem que cada pedaço da fala (sílaba) corresponde a um pedaço da escrita, começam a escrever procurando fazer essa correspondência. Alguns, entretanto, não percebem ainda que o pedaço que escutam na fala pode corresponder a mais de uma letra. Então, produzem escritas usando só uma letra para cada sílaba.
Depois, à medida que observam e analisam sua escrita e a dos colegas, com a orientação dos educadores, vão percebendo que precisam pôr mais letras para representar as sílabas das palavras. Suas escritas passam a evidenciar esse esforço de incluir mais letras para representar cada pedaço da fala que identificam. Sempre observando outros modelos e analisando sua própria produção, avançam em suas hipóteses e passam a representar os sons da fala adequadamente, dominando o mecanismo básico de formação das sílabas, com vogais e consoantes.
Certamente ainda cometerão muitos erros de ortografia, não saberão como dividir as palavras, nem usar pontuação. Entretanto, nessa etapa, eles já conseguem produzir escritas legíveis. Ao final, percebem que a correspondência entre fala e escrita não é exata, que não se escreve como se fala, e começam a identificar as irregularidades da ortografia e a perceber que a linguagem da escrita é diferente da linguagem da fala.
Vale ressaltar que não se ensina um aluno a passar de uma etapa à outra do processo de construção do sistema de escrita e nem que estas etapas são obrigatórias. Este é um processo cognitivo que não pode ser ensinado por ninguém, acontecendo em um espaço de tempo único para cada indivíduo. Entretanto, o papel do educador é fundamental, no sentido de que este avanço cognitivo só pode se dar se o sujeito interagir com diferentes situações-problema que desestabilizem seus saberes e o lancem na construção de novos esquemas que o levem às soluções para estes problemas.
O sujeito é colocado no papel de aprendiz, no centro do processo, em detrimento do método. Há uma diferença muito grande entre o que uma metodologia externa propõe como progressão e o que se passa na cabeça do sujeito alfabetizando.
A escrita é o objeto de conhecimento e o sujeito que aprende, o sujeito cognoscente. O método pode facilitar ou atrapalhar, ou até ajudar, mas não produz, necessariamente, a aprendizagem. Desta forma, a construção – aquisição – de conhecimento só pode ser resultado de ações do sujeito que aprende. Nenhuma aprendizagem tem um ponto de partida absoluto. Isso pode ser percebido ao pensarmos que todo objeto de conhecimento, por mais novo que seja, tem que guardar alguma relação com os esquemas já construídos do sujeito.
Diferente do que se aprende tradicionalmente, acreditamos que o “erro” não é algo negativo, ele é parte importante do processo produtivo do aluno e material a partir do qual o professor pensa em atividades específicas para desestabilizar hipóteses de alfabetização. Ao ser questionada sobre sua produção, a criança reflete, busca alternativas e, ao validar, ou não, suas hipóteses, vai avançando no processo de construção da escrita alfabética. Não existe erro, conceitualmente falando, se estamos tratando do processo de aquisição do sistema alfabético, se o exercício que trazemos aos alunos se dá justamente na reflexão sobre a escrita, que eles ainda não dominam.
Se a criança que, sabidamente, não está na hipótese alfabética e, portanto, ainda está em processo de apropriação do nosso sistema de escrita, é exigida a responder de acordo com a escrita convencional, ela não apenas deixa de pensar sobre o sistema alfabético, deixando, com isso, de levantar hipóteses, testá-las ou confrontá-las, mas também atestamos seu não saber e deixamos de validar suas reflexões. Ela precisa ser autorizada pelos adultos a seu redor a colocar suas hipóteses em prática. Devemos valorizar suas escritas e encorajá-las a seguirem refletindo e ousando, registrando, escrevendo.
Entendemos que a diversidade faz parte do dia-a-dia e ela nos complementa, nos enriquece. Conhecer mais sobre a linguagem que se escreve é uma importante conquista para quem está em processo de compreensão do sistema alfabético.