por Sonia Barreira, com a colaboração de Cristina Pereira,
fundadoras da Escola da Vila
Comovida, recebo a notícia da passagem da doutora Ana Teberosky, por um telefonema de Cristina Pereira, a Cris Preta, uma das fundadoras da Escola da Vila. Com pesar, comentamos entre nós sobre o falecimento da professora e, logo em seguida, abrimos a porta da memória para recuperar as inúmeras contribuições dessa fantástica pesquisadora para nossas vidas profissionais.
Foi graças à Beatriz Cardoso, que havia sido professora na Vila, que pudemos estabelecer contato com a professora e trazê-la para uma atividade na Escola da Vila. Naquele momento, elas começaram a construir uma parceria fecunda que resultou em livros, projetos comuns, investigações conjuntas e uma grande amizade.
Divergimos sobre o ano, mas foi algo entre 1984 e 1988, quando recebemos pela primeira vez a doutora Ana Teberosky em nossa escola. Foi um marco importante, um divisor de águas em nossa história pedagógica. Naquela época, a Vila promovia supervisões públicas: apresentávamos nosso trabalho para os assessores externos, que comentavam e analisavam sua qualidade didática, diante de uma audiência formada por colegas de outras escolas. Desde então, havia uma crença dominante de que a reflexão coletiva era o motor impulsionador da inovação pedagógica.
Éramos jovens, tanto nós, professoras, quanto a própria Escola da Vila, que começava a crescer e implantar o fundamental 1, e vivia uma verdadeira expedição pedagógica, explorando novos territórios, novas formas de fazer educação, ainda sem todas as ferramentas para isto, mas com muita curiosidade e muito compromisso.
Quando ocorreu nosso primeiro contato com a professora Ana Teberosky, nossa equipe já havia lido a Psicogênese da Língua Escrita, já havia assistido à Emília Ferreiro em sua primeira palestra aberta no Brasil, que aconteceu no teatro Sérgio Cardoso para uma multidão de educadores e educadoras. Estávamos muito envolvidas com o estudo dessas novas ideias, que tanto influenciam nossa maneira de entender a alfabetização. Vivíamos uma revolução conceitual, porque tudo o que sabíamos sobre a aprendizagem da língua escrita estava sendo questionada pelas novas pesquisas.
Mas foi durante essa primeira supervisão que Ana Teberosky, com sua vivacidade e seu rigor teórico, colocou-nos contra a parede. Eu apresentei um trabalho com contos de fadas realizado com alunos e alunas de 8os anos, e seus primeiros questionamentos me encurralaram: por que esse tipo de texto? Quais seus objetivos com essa proposta? O que você acha que os alunos e as alunas já sabem sobre isto? Eu não sabia responder a nenhuma dessas simples e objetivas perguntas!
Hoje, consideramos que qualquer planejamento de aula deve partir da resposta a essas questões, mas, para nós, naquele momento, herdeiras do laissez-faire, influenciadas pela oposição à diretividade e valorizando apenas o que emergia do interesse de alunos e alunas, não fazia sentido ter todas essas decisões tomadas e todas essas escolhas previamente definidas. Desde aquele momento, ela já nos alertava para esse aspecto fundamental do fazer docente: a intencionalidade pedagógica.
Cristina, por sua vez, trabalhava com a turma do pré, crianças de 6 anos, e havia investido em atividades com as histórias em quadrinhos, estava muito orgulhosa do envolvimento de seus alunos e suas alunas para escrever. Muitas das propostas eram preenchimento de lacunas, que hoje vemos tão criticamente. Mais precisamente, a proposta era que escrevessem as pequenas palavras como: “Alô?”, “Oi!”, “Ui”, entre outros sons onomatopaicos nos balões em branco, que indicavam as falas dos personagens. Ana, observando a aula, aproximou-se de Cristina e perguntou enfaticamente: por que só isso? Por que não pedir que escrevam o restante? (Para nós, era óbvio, não pedíamos, porque não havíamos ensinado ainda e imaginávamos que, se não ensinamos, eles não sabiam!!!).
Provocada pelo questionamento de Ana Teberosky, Cristina se arriscou: e qual não foi sua surpresa quando seus alunos e suas alunas escreveram frases complexas, traduzindo as diferentes cenas dos quadrinhos em complicadas sentenças escritas, com omissão de letras, sem separação entre as palavras, mas claramente legíveis! Ela constatou, entre espantada e feliz, que parte daquelas crianças não havia esperado a informação frontal, e já sabiam escrever longas e complexas frases! Era a teoria que estávamos estudando se concretizando naquela sala de aula!
A partir daí, encorajada pelas provocações, as propostas de Cristina se ampliaram, e as produções de seus alunos e suas alunas floresceram!
Cristina não hesitou em deixar tudo de lado e seguir para Barcelona, onde Ana Teberosky morava e trabalhava, para observar o dia a dia da Escola Casas, onde ela fazia uma assessoria e um acompanhamento do trabalho pedagógico. Aprendeu muito e voltou para a Escola da Vila para nos apoiar nesse processo de transformação pedagógica.
Anos depois, Ana Teberosky voltou para uma nova assessoria, com foco no desenvolvimento textual, trazia análises linguísticas que nos escapavam, e o efeito foi o surgimento de grupos de estudos de linguística aplicada para embasar a compreensão da escrita de textos mais longos por parte dos alunos e das alunas.
Olhando a distância e tendo todos esses conhecimentos e aprendizados bastante consolidados há mais de trinta anos, pode parecer ao leitor que foram conquistas banais. Longe disto, de fato, foram rupturas muito importantes, especialmente na compreensão do papel da escola e na crença na capacidade dos e das estudantes!
Ana Teberosky impactou fortemente os professores e as professoras do Brasil que tiveram contato com ela e com sua obra. Por meio destes e destas, demais docentes impactaram-se igualmente, transformaram suas formas de ensinar e entenderam a relevância da teoria para suas práticas educacionais. Milhares de crianças foram beneficiadas e reconhecidas em sua potência para aprender. Muitas escolas foram influenciadas e atualizaram seus currículos, valorizando a construção do conhecimento por parte de alunos e alunas!
Nosso reconhecimento e agradecimento a essa profissional que nos deixou na semana passada, e a certeza de que seu legado foi muito além de suas publicações. Seu entusiasmo e seu rigor foram também importantes e nos ajudaram a entender o fazer docente como um fazer profissional, e a teoria, como parte fundamental de nossas ações.
Giulianny Russo
A história da Escola da Vila se mistura à história da alfabetização em nosso país. Se alguns grupos foram fundamentais para a difusão do construtivismo psicogenético pelo país, a Vila foi peça chave, no meu modo de ler esta história, para a compreensão e aprofundamento teórico e a coerência na transposição didática.
Esta história (como tantas outras, mas como sou alfabetizadora, me interessa mais esta rs) precisa estar documentada, registrada, publicada. Esta história (acima) também mostra uma ruptura na concepção da atuação docente, em um reposicionamento com sujeito de conhecimento, de aprendizagem, em processo eterno de constituição….
Muito tocada pelo relato. Obrigada por compartilharem.