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Como fazer com que a inclusão seja leve e natural dentro da escola?

A partir da década de 90, quando estudantes com deficiências passaram a frequentar escolas regulares no Brasil, a educação deles passou a ser mais um desafio da prática docente, alvo de estudo, reflexão, angústia e alegria, por parte de educadores e famílias.

Desde então, questionamentos como “é uma estratégia inclusiva tirar o aluno da sala para fazer a atividade em outro espaço?”, “deixar o aluno fazendo uma atividade diferente na própria sala não é segregação?”, “todo estudante com deficiência precisa ter um acompanhante?” são frequentes, importantes e revelam a necessidade de abrirmos espaços institucionais de formação e acolhimento para as equipes e as famílias (de estudantes com e sem deficiência), na medida em que o capacitismo¹ é estruturante das nossas subjetividades há séculos e a tendência “natural”, assim como na luta antirracista, é de, ao atuarmos sem intencionalidade, promovermos a exclusão, reproduzirmos em nossas atitudes e falas o preconceito.

Quando se fala em educação inclusiva, é necessário traduzir o “direito à educação” entendendo-o como acesso e participação efetiva nas propostas escolares curriculares, não curriculares e no convívio. A concepção de deficiência hoje é entendida de forma relacional, não mais como algo inerente à pessoa com deficiência. Isso quer dizer que é preciso sempre identificar quais são as barreiras do ambiente, do contexto em que a pessoa está inserida, que podem impedir o acesso e a participação e analisar que tipos de apoios serão necessários oferecer. E como isso se dá na prática, na sala de aula?

Para responder a questionamentos como este, e também para fazer com que a diversidade seja vivida de forma respeitosa e verdadeira dentro da escola, é necessário construir e cultivar a compreensão e a prática de dois fundamentos éticos na atuação de todo e qualquer profissional que ali atue: o direito à diferença e o direito à igualdade. O direito à diferença diz respeito ao reconhecimento da singularidade de cada ser humano, protegendo sua condição humana, garantindo seu direito de ser quem se é, afirmando sua dignidade, valorizando e exaltando a necessidade de respeito à alteridade. O direito à igualdade, por sua vez, entende todas essas singularidades como pertencentes de um mesmo coletivo: a sociedade humana. E, por isso, por tal condição partilhada, possuem, desde o século 20, os mesmos direitos humanos. E como isso se dá na prática, na sala de aula?

Nas semanas de retorno às aulas, em agosto, uma das professoras de um 2o ano pediu que as crianças contassem de suas férias e organizou momentos na rotina para isso. Analisou seu planejamento, dividiu as crianças da turma, antecipou com as crianças como seria essa organização, explicou o que teriam de fazer. Cada criança teria 5 minutos para contar para onde tinha ido, quem tinha encontrado, o que havia feito e todos deveriam ter as informações que iriam falar escritas por perto. Para realizar essa proposta, a maioria das crianças não enfrentaria grandes barreiras. Dentro da diversidade de estudantes e personalidades na turma, os mais tímidos precisaram sair de sua zona de conforto, falar diante da turma toda, se arriscar. Esse grupo de alunos enfrentaria barreiras e precisaria de apoio para realizar a proposta? Certamente. A construção a longo prazo de um ambiente acolhedor e respeitoso ao longo do ano, bem como a presença da professora mais perto, o incentivo dela e o apoio de perguntas. Além dessas crianças, uma aluna com deficiência intelectual, cujas principais metas são se fazer entender através da oralidade, organizar seu pensamento, estruturando frases com começo, meio e fim e evocar nomes de pessoas e lugares, enfrentaria barreiras ainda maiores e apenas esses apoios não seriam suficientes.

Dessa forma, para garantir seu acesso e participação àquela proposta, a professora solicitou que a família enviasse fotos das férias dela, acompanhadas de relatos com nomes de cidades e pessoas, para que a professora pudesse apoiar a aluna no momento em que ela estivesse contando para seus colegas aonde tinha ido, quem tinha encontrado, o que havia feito. No dia e na hora da aluna com deficiência intelectual se apresentar, a professora também projetou as fotos das férias dela no telão para toda a turma, de forma que tanto a própria aluna quanto as demais crianças pudessem observar e acompanhar o relato. Ela narrou suas férias apoiada nas imagens, ouviu e respondeu a perguntas dos colegas e da professora. Nenhuma das outras crianças usou o telão com as fotos e precisou desse apoio para contar de suas férias. Ao atuar dessa forma, a professora garantiu o direito à igualdade e à diferença de sua aluna com deficiência. As crianças, todas da turma, vivenciaram essas diferenciações como algo leve e natural.

A experiência da heterogeneidade no ritmo de aprendizagem, através do contato diário com um outro, que difere muito ou pouco, vivido na escola pelas crianças e pelos adolescentes cotidianamente se dá de forma muito particular em cada faixa etária, em cada grupo-classe e na história particular de cada um. Dos educadores, exige diferentes tipos de intervenção. A abordagem multinível (*) organiza-as em três níveis, que nos ajudam a identificar as práticas da professora. Há apoios que serão realizados com menor frequência para uma porcentagem pequena da turma: as medidas adicionais, como contactar a família, solicitar as fotos e projetá-las no telão. Há apoios que serão ofertados com frequência um pouco maior e para uma porcentagem de alunos também maior: as medidas seletivas, como estar mais próximo da criança, oferecer perguntas e comentários que a estimulem e a incentivem a seguir. E, por fim, há as estratégias que serão apoios para todos os alunos e serão intervenções frequentes, como pedir o registro escrito, para consulta, caso necessário.

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De forma geral, é possível afirmar que quando bem pequenos, ainda nos espaços de educação infantil, é comum que as crianças experimentem as diferenças visuais e subjetivas entre os humanos e as diferenciações realizadas na escola de forma menos consciente e intensa do que os adolescentes, ainda que algumas delas sejam concretas e aparentemente mais fáceis de se reconhecer como a cor da pele, do cabelo, dos olhos, altura, peso ou a intervenção feita pela professora do 2o ano.

Conforme vão crescendo e tendo contato diário com o outro, vão se reconhecendo nessas características mais ou menos objetivas, construindo sua própria identidade, simultaneamente em que vão também se dando conta de como são os outros e, na escola, quais são as diferenciações vividas por cada um, num processo crescente de consciência, que desperta uma série de emoções e pensamentos, por vezes até contraditórios, como curiosidade, encantamento, incômodo, inveja, ciúmes, raiva.

A professora poderia ter usado o recurso do telão com todos os alunos? Pedido que todas as famílias enviassem fotos e relatos que apoiassem? Poderia. Mas, aqui, a professora tem clareza dos objetivos de sua ação, de quem são seus alunos, quais são os desafios de cada um, o que ela pode fazer para oferecer apoios que possibilitem a participação de todos, desafiando-os na medida certa, adequada a cada um e seus alunos. Vendo-a atuar assim, as crianças entendem que as diferenciações realizadas contribuem com o desenvolvimento de todos e todas. Assim, a inclusão de crianças e adolescentes com deficiência em escolas regulares somente será vivida como leve e natural pelas crianças por meio de processos intencionais diários por parte de escolas e famílias, reforçando tais direitos, num processo de desconstrução e reconstrução, em uma luta diária anticapacitista, para seguirmos construindo sociedades humanas – e escolas – mais plurais e mais cidadãs.

(*) fonte: Para uma Educação Inclusiva: Manual de Apoio à Prática

 

Escrito por Julia Narvai – Orientadora da Escola da Vila
Os textos aqui publicados não refletem, necessariamente, a opinião do Centro de Formação.

1Preconceito e discriminação contras as pessoas com deficiência

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