A crise na educação brasileira, entendida por Darcy Ribeiro como um “projeto” ganha contornos dramáticos na fase final da educação básica: o Ensino Médio. Nessa etapa eclodem, especialmente sobre os alunos e professores, as contradições acumuladas ao longo de toda a escolarização, herdando o complexo de problemas das fases anteriores e sofrendo as pressões das expectativas futuras, a saber: do mercado de trabalho.
Observam-se daí sintomas sociais cada vez mais intensos como o crescente aumento das automutilações e suicídios entre jovens, depressão, evasão escolar, falta de renovação e desinteresse pela carreira docente ocasionando o iminente risco de um “apagão” docente nessa fase.
Tais sintomas do nosso tempo formam o pano de fundo para uma necessária reforma no Ensino Médio. Entretanto, outras demandas se sobrepõem a essas já citadas, a saber: as pressões exercidas por um mercado de trabalho cada vez mais precarizado, um tipo específico de mentalidade que vê no indivíduo, no individualismo e na competição de todos contra todos, a saída para as contradições sociais, econômicas e políticas da contemporaneidade. Essa racionalidade produz um outro discurso que aponta para uma reforma do Ensino Médio capaz de “adaptar o jovem à realidade do século XXI”.
Byung Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, entende esse fenômeno como algo integrante da chamada “sociedade do desempenho” produzindo um tipo de subjetivação que esfacela a potência de vida do sujeito contemporâneo. Estamos imersos na “sociedade do cansaço”, lugar onde o “Eros” está em agonia.
É nesse “espírito dos tempos” que surge a reforma do Ensino Médio cristalizada pela lei 14.315 de 2017. Tal reforma suscitou acaloradas discussões no meio educacional do país, constituindo-se como um campo de disputas. A interpretação hegemônica ficou a cargo daqueles que entendem o Ensino Médio como um espaço que se presta à formação de uma certa mentalidade, uma racionalidade utilitarista, à serviço do mercado de trabalho contemporâneo.
Essa racionalidade se caracterizaria pela necessidade de uma mão-de-obra “empreendedora”, preparada para disputar espaço no mercado de trabalho. Formar “empreendedores de si mesmos, aptos a competirem uns contra os outros”, esse seria o enunciado principal dessa mentalidade.
Esse contexto, demanda de nós educadores, a urgência de se estabelecer um pensamento crítico acerca de tais contradições. De um lado as demandas de uma juventude que não se vê representada na escola e não atribui significado ou sentido naquilo que é ensinado ou mesmo, no limite, os sentidos e significados de suas próprias vidas. De outro, um mercado cada vez menos dependente de mão de obra, o que transforma completamente as relações das forças de trabalho.
Então, qual seria o papel da escola nessa nova conformação de forças? Deve a escola se render àquilo que é considerado “útil”, adequando-se à uma forma de estar em um mundo que parece progressivamente mais adoecido, especialmente em termos de saúde mental?
O Saber da Experiência e os Itinerários Formativos
Uma luta já antiga na história da educação brasileira é a da busca por uma educação mais significativa, mais centrada nas aprendizagens dos alunos do que nos saberes acumulados pela tradição e, principalmente, uma educação mais prática, que dialoga mais com a realidade concreta dos estudantes. Mas, se implementarmos uma experiência mais prática, não estamos justamente caindo na esparrela do utilitarismo? Talvez não, se pensarmos nos termos de uma pedagogia de projetos.
A chamada pedagogia de projetos, tão bem-vista nos anos iniciais da escolarização, vai se tornando cada vez mais rarefeita ao longo da educação básica até se tornar quase inexistente no Ensino Médio. Fruto de uma concepção de enxergar no Ensino Médio o topo de um tipo de escolarização voltado para o triunfo da razão pura e da eliminação progressiva do corpo e de suas experiências. O sujeito da razão pura já está formado, falta apenas conformá-lo.
A pedagogia de projetos coloca-se como uma resistência a esse processo histórico pedagógico, herança do pragmatismo de John Dewey. Traduzido no Brasil por Anísio Teixeira no contexto da geração dos anos 30 e de sua busca por uma identidade nacional. Anísio viu nas ideias de Dewey uma potente fundamentação na construção dessa identidade.
Nas palavras de Roberto Mangabeira Unger¹, o Brasil se caracteriza por ser uma grande “anarquia criativa, onde o sincretismo é ao mesmo tempo problema e solução”. Em suas experiências das Escolas-Parque na Bahia, Anísio Teixeira, pôde experimentar a transformação desse “espontaneísmo” anárquico em “flexibilidade preparada”.
O que está em jogo nessa abordagem pedagógica não é o aprendizado daquilo que é útil, mas sim daquilo que faz sentido. Nesse ponto a atual reforma no Ensino Médio, não obstante estar envolta em um contexto de utilitarismo, pode abrir espaços para uma prática inserida nesse saber da experiência preconizada pela pedagogia de projetos.
Isso, não sem antes se realizar um grande esforço de reflexão crítica acerca da prática por parte de nós educadores. Há brechas e fissuras no discurso predominante que podem possibilitar um escape do raso utilitarismo para uma busca de sentido.
Projetos de Vida e Sentido de Vida
Além dos itinerários formativos a reforma do Ensino Médio preconiza a construção de projetos de vida com as juventudes. Termo com o qual nos deparamos sem uma definição lá muito bem desenhada. Há uma certa indefinição nos documentos oficiais ou, ao menos, a necessidade de se fazer um esforço interpretativo para se chegar a uma definição do que significa projeto de vida. Motivo pelo qual há outro espaço de disputa pelo seu significado, pelo seu real sentido.
O risco que corremos com os tais projetos de vida, tal como preconizados pelos textos e contextos da reforma do Ensino Médio, é o de entrarmos em uma busca pelo “Santo Graal” da utilidade, tentarmos encontrar nos nossos jovens a sua “utilidade” na vida, ou para o quê eles “servem”. Daí o caminho mais danoso para os jovens e uma via régia para encontrar a sociedade do desempenho e do cansaço. Listas de objetivos e metas a serem atingidas nos mais variados “campos” da vida dariam um tom de eficiência e, claro, exaustão para os jovens.
O resultado é uma falsa sensação de direcionamento, já que se pressupõe que esse aluno do Ensino Médio está pronto para escolher, ele saberia o que quer, falta ao jovem apenas o “método” correto para realizar a escolha.
Um caminho mais profícuo, mas também, de uma certa resistência ao discurso predominante, seria o de encontrar as brechas para a escuta dos sentidos de existência, das potências esquecidas, dos fracassos ressignificados, das representações das vivências. Esse caminho exige que pensemos não na chave daquilo que é útil mas sim na daquilo que faz sentido. Exige que retomemos um original de fundante sentido da palavra escola, a “scholé” da antiguidade.
Um lugar afastado das preocupações utilitárias, onde um certo ócio é cultivado, daquele tipo em que se pode experimentar a vida em cada respiração, admirar as formas e o sentido dos processos, amplificar os sentidos do corpo para se atribuir sentido à própria vida. Um lugar do saber da experiência, onde o si mesmo é atravessado pelo outro.
Escrito por Carlos Castanha – Mestre em Educação, especialista em Teoria Psicanalítica, historiador e formador do Centro de Formação da Vila.
Os textos aqui publicados não refletem, necessariamente, a opinião do Centro de Formação.
¹Palestra proferida em 16 de Outubro de 2017. Disponível em: https://goo.gl/CHx5oL