Antes de falar qualquer coisa a respeito da adolescência, é importante lembrar que essa fase, da forma como a conhecemos hoje, é uma invenção histórica, produzida no interior da nossa sociedade para indicar o período existente entre as também denominadas infância e vida adulta. Foi assim que o psicanalista e professor Christian Dunker iniciou sua palestra sobre a construção de identidades protagonizada por adolescentes, atualmente marcada por fortes disputas e conflitos nas redes sociais.
Historicamente, no mesmo momento em que a escola se efetiva como uma das mais sólidas instituições ocidentais, a adolescência se estabelece como categoria, indicando uma etapa de intensas mudanças. Mudanças essas representadas por rituais de passagem que, se no passado já tiveram traços mais coletivos, na modernidade ocidental ganharam caráter individual. Isso significa que cada adolescente precisa descobrir e construir seu próprio rito de mudança de status, ou seja, de encerramento da infância e início da adultez – o que sempre envolve, em algum nível, uma crise provocada pela separação da mãe, do pai e/ou de demais responsáveis. Crise esperada e desejada, mas nem por isso menos dolorosa para ambas as partes.
Para alguns jovens, viver esse processo pode ser incrível; para outros, muito dolorido. Do mesmo modo, para uns, o rito pode ser simbolizado pela entrada em um time de futebol, enquanto, para outros, por uma viagem, um beijo, uma nova amizade ou pela mudança drástica de visual. Geralmente, passar por isso gera uma série de emoções, como o medo, o luto e as inseguranças. No entanto, essa individualização dos rituais faz com que, muitas vezes, seja difícil para a escola e até mesmo para as famílias discernir o marco de cada indivíduo, o que por consequência torna mais difícil a identificação de problemas, sofrimentos e possíveis ajudas que podem ser oferecidas.
Busca por novas identificações
Um dos aspectos mais significativos desse ciclo é a transformação da imagem. De si, do outro, do grupo e do mundo como um todo. Como nos explica Christian, uma identidade é composta por múltiplos reconhecimentos, cruzados e ambivalentes, que podem se dar por meio da semelhança ou da diferença. É na adolescência, portanto, que as identidades criadas até então são revisadas e inicia-se a procura por novas identificações.
Segundo o psicanalista, todo ato de reconhecimento se dá a partir de uma imagem, em que o objeto imaginado caracteriza aquilo que se pretende materializar na identidade (“isto sou eu”). Essa idealização, proveniente do desejo, tem base em buscas muito distintas por parte de cada sujeito, que já sabendo o que é comum aos outros, busca o diferente. Daí nasce a dificuldade em definir a adolescência: a tentativa de sua definição vai na contramão daquilo que justamente resume os esforços empenhados pelos jovens nesse momento, isto é, diferenciar-se e ser reconhecido por isso.
Sendo assim, quando os adolescentes encontram obstáculos para identificar as imagens com as quais eles se reconhecem e acreditam que os definem, geram-se muitas angústias. Logo, um dos sentimentos mais típicos dessa fase é a incompreensão (“só eu estou vivendo isso; todos encontraram as suas imagens, menos eu”), que por sua vez leva à sensação de frustração e de exclusão (“eu não tenho mesmo um lugar neste mundo”).
Idealização da identidade na adolescência
O perigo de que essa inclinação ao afastamento não seja percebida pelos adultos é que os adolescentes busquem e, principalmente, encontrem conforto em certos prazeres, riscos e dores, inclusive físicas (que nessas circunstâncias parecem mais reais do que muitas das imagens procuradas). Em um contexto em que as redes sociais predominam as formas de interação contemporâneas e, mais ainda, que a pandemia impôs dois anos de isolamento social, tudo isso se tornou ainda mais complexo.
A internet, conhecendo este processo incessante de busca, oferece e vende, em escala industrial, imagens possíveis de serem compradas pelos adolescentes, em um só clique. Para além do efeito da infinitização de imagens, somada à idealização sem precedentes das identidades, existem também os mecanismos que permitem a multiplicação do eu e, ao mesmo tempo, a ocultação da autoimagem. Hoje, talvez os mais discutidos sejam os filtros, que ofertam uma gama de transformações nos corpos, permitindo que os jovens se encaixem em padrões de beleza. Mas existem também as estratégias de manipulação das identidades, como avatares, perfis fakes, nicknames inventados e comunicações anônimas.
Mutação estrutural da linguagem
Em suma, o degrau geracional produzido pelo universo digital criou o que Christian chama de mutação estrutural da linguagem, agravante do sentimento de solidão na adolescência. Suas técnicas colocam os jovens em contato com um número infinito de imagens e pessoas passíveis de idealização, que nem sempre são reais. Essa gramática proporciona muitas decepções, atreladas também aos riscos da exposição e do cancelamento.
Com isso, parece haver cada vez mais espaço para a exibição do que é dito público, e cada vez menos para o que é privado; mais espaço para o que é comum, e menos para o que é diverso (quando é justamente isso que os jovens procuram nesta fase). Sem as referências de amigos e amigas na escola, de colegas um pouco mais velhos com as suas identidades e corpos, a busca por imagens na internet foi ainda mais acentuada com a pandemia.
Temos, então, jovens cada vez mais hábeis para criar (e copiar) imagens virtuais de si mesmos. Paralelamente, eles têm cada vez menos oportunidades de encontro e de troca, quando, em geral, a chance de se expressar e escutar uns aos outros faz com que eles se dêem conta de que seus pares sofrem das mesmas questões que si. À medida que os adolescentes percebem de qual grupo de “excluídos” fazem parte, e qual é a imagem compartilhada entre esse grupo, a crise e a angústia se solucionam.
Promover o diálogo na adolescência
Parece, porém, que como sociedade estamos caminhando no sentido contrário desse fluxo. Cabe à convivência e à interação, peças fundamentais da escola, servirem como antídotos para esse movimento. É quando o sujeito se expõe ao outro e percebe que esse o olha de maneira diferente do que ele imaginava que as identidades se modificam, em uma espécie de instabilidade produtiva. Precisamos incentivar que os jovens falem sobre suas dores e dificuldades enfrentadas nesse processo, para que assim aprendam a encará-las – e, para isso, é preciso também saber escutá-los, verdadeiramente e com tempo.
Caso contrário, as exclusões, o bullying, a ansiedade, o pânico e a depressão que nos preocupam agora, em especial depois da volta das atividades presenciais, continuarão se agravando entre as novas gerações. Aos educadores e educadoras, compete fazer isso na escola, criando espaços intencionais de escuta, troca e acolhimento, tendo inclusive outros jovens como parceiros. Aos pais, mães e familiares, compete fazer isso em casa, não só priorizando as conversas, mas também servindo como referência para o enfrentamento dos desafios e frustrações do cotidiano.
Escrito por Bianca Laurino – Equipe de Comunicação da Bahema Educação
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