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A neutralidade do educador em tempos de intolerância

Aula e aprendizagem não se encerram num processo de absorção acrítica

A discussão sobre a neutralidade do professor vem adquirindo novas matizes a partir da polarização política que se instaurou no Brasil. O contorno ideológico vai desde a preferência por artistas (“se você gosta de Chico Buarque já entendi quem você é; se você escuta sertanejo, já sei em quem vai votar!”) até pautas sociais e econômicas.

Na área pedagógica, a vigilância, o julgamento, a condenação e o “cancelamento” precisam ser repensados. O tema da neutralidade do professor esquentou e há erros de todos os lados. Vamos a exemplos recentes.

Educação no Brasil

O professor usa o “pronome neutro” para cumprimentar estudantes numa aula online: “Bom dia a todos, todas e ‘todes’”. Imediatamente, a gravação de sua fala é feita por uma indignada família e enviada a ativistas contrários à “ideologia de gênero” que, por sua vez, estimulam pais a invadir as redes sociais da escola exigindo a demissão do docente. Estaríamos aptos a concluir que se trata de um professor doutrinador? Ou poderíamos supor outras motivações que levassem esse profissional a assumir o uso da controvertida expressão?

Outro caso: durante palestra de uma liderança de esquerda num colégio de elite, o conteúdo de sua fala leva um adolescente a manifestar-se de forma contundente, expressando, como é comum nessa idade, argumentação falha e cheia de paixão. O professor desqualifica o aluno e enaltece sua própria condição de especialista no tema. Em que contexto essa cena realmente ocorreu? As palmas dos demais alunos à intervenção assoberbada do professor seriam prova de uma doutrinação ou poderíamos supor que os estudantes teriam motivos para apoiar o docente e repudiar a atitude do colega?

Os dois exemplos têm em comum profissionais da educação expressando opiniões sobre temas carimbados hoje, facilmente, como posições políticas. Da mesma maneira, podem ser exemplos de inadequações profissionais que sempre ocorreram e seguirão ocorrendo nas unidades escolares.

A questão central é se as instituições estão aptas a lidar com excessos e deslizes de seus profissionais. E temos de refletir se os alunos seriam tão influenciáveis a ponto de famílias precisarem se organizar para vigiar e punir publicamente esses professores.

Ato no Colégio Bandeirantes, em SP

Em que pese a necessidade de curadoria de materiais de apoio didático, como apostilas, nós, educadores, sabemos do seu papel secundário na formação geral do aluno. A aula e a aprendizagem não se encerram num processo de absorção acrítica das informações contidas em livros ou exposições. Tampouco será uma frase ou uma expressão infeliz que vão caracterizar a visão de mundo do professor, sua capacidade profissional ou a pluralidade de seu curso.

Se queremos formar jovens que saibam ler o mundo, debater, construir opiniões e conseguir expressá-las, precisamos admitir que entrar em contato com posições divergentes é parte do processo educativo.

Ao educador, cabe planejar com critério os temas polêmicos a serem tratados em aula, assegurar-se da capacidade cognitiva da faixa etária do alunado para a compreensão dos diferentes temas e analisar os valores da comunidade educacional onde atua.

Às escolas, cabe manter um ambiente plural, reflexivo e instigante para que os estudantes se envolvam e vejam sentido no árduo processo de aquisição de conhecimentos. Ao mesmo tempo, devem oferecer normas claras para abordagem de temas controvertidos.

Escola sem Partido

Os ares de escândalo e indignação assumidos quando um professor deixa escapar seus valores e opiniões revelam a busca por uma neutralidade quase utópica em sala de aula. Vale trazer ao debate um teórico do tema, ​Jaume Trilla, da Universidade de Barcelona: “Há os que acreditam que os professores devem exercer seu papel de maneira neutra; há outros que pensam que neutralidade não é apenas educacionalmente indesejável, mas uma pretensão lógica e praticamente impossível”.

É hora de repensarmos radicalismos e cancelamentos diante das nuances inerentes ao ser humano

—dentro ou fora da sala de aula. Ganharão os estudantes em sua formação. Ganhará a sociedade com cidadãos preparados para os desafios da tão necessária convivência com o contraditório.

Escrito por Sonia Barreira – Educadora, é diretora pedagógica da Bahema Educação e fundadora da Escola da Vila

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